domingo, janeiro 23, 2005

Nas Trevas/Sem Luz

Como há algum tempo não se via, Chilita e Gonçalo, juntos de novo num texto, algo negro... Esperamos que gostem!


Detesto a tua forma de passar ao lado da vida, a maneira como ela te parece tão improvável em termos de felicidade, a maneira como pintas tudo de preto, cobrindo mesmo o próprio Sol com um manto...de forma a que ele não brilhe sobre ninguém, nem sobre quem o quer mais. Caminhas num passeio em que a continuar dessa forma, os buracos vão continuar a aparecer, a ser cada vez maiores e as desgraças cada vez menos, porque cada vez mais vais parar, encostar a uma parede e ficar por ali à espera que o tempo passe lentamente, sem pensar se está muito frio ou quente aquele dia em particular, os outros dias todos que podem vir a acontecer. Não tens medo do frio à noite nem do calor durante o dia, o teu coração é uma máquina auto-suficiente que queima o suficiente para a tua subsistência enquanto Ser, não vive nem sente, carbura sentimentos como um pequeno fósforo se consome rapidamente com o lento desaparecer do oxigénio, ele consome, torce e mutila, é uma máquina de guerra perfeita.
É nessa estrada em que caminham os perdidos, os atirados ao chão pela vida que não se querem levantar, os que baixaram os braços e preferem levar todos os dias com o lento correr das horas, não pensar e não sofrer, deixar o Sol nascer, contemplar o seu auge e esperar que ele desça, sem sequer por uma vez arriscar uma saída à chuva, para lavar a alma de tudo o que a conspurca. É nessa estrada onde já ninguém consegue levantar os olhos e olhar os outros de frente que tu caminhas, aos tropeções nas próprias pedras que por ali estão...dás-lhes pontapés, como as crianças fazem, eventualmente magoas um pé e choras...como uma criança que além de estar magoada está agora a perceber que não é com pontapés que se vai sentir melhor, não é com a raiva que vai construir...só destruir.
E destruindo avanças o teu caminho como uma máquina de destruição maciça. Olho para ti e vejo uma personagem de cinema; dura, fria, impiedosa, implacável, que nada vê e nada sente. Segues o teu caminho dormente, ausente e indiferente, deixando um rasto de buraco negro atrás de ti, que teima em sugar a luz do Sol… um rasto de podridão que teima em sugar o apogeu do Sol, para afogar aquela luz ofuscante nas tuas trevas. Como uma profetisa da desgraça avanças o teu caminho cheio de pedras, solidão e amargura… Encostas-te à vida e segues a manada, insultando quem te fez nascer com a tua recusa em tomares parte neste mundo… encostas-te à vida e tornas-te num fantasma ensombrado que a persegue e vaia, quando o que mais desejas é fundires-te com ela… No entanto, continuas no teu estado de recusa dormente, recusando-te a aceitares a vida que é parte de ti, enquanto te consomes em trevas e solidão… dentro do teu buraco negro. Não olhas em frente, porque tens medo de ver nos olhos dos outros “zombies” e robots como tu, o reflexo de quem és. Não olhas em frente porque temes o derradeiro momento em que irás desejar agarrar a vida… Nesse momento vais esticar a mão para lhe implorares tréguas e paz na tua guerra pessoal e aí vais descobrir que a luz que sempre te perseguiu, apesar de tu a desdenhares, simplesmente partiu e não existe mais… Com a sua partida, partes tu também, embalada nos braços da morte, chorando como uma menina nos braços do amante que nunca desejou verdadeiramente e que só se apercebeu disso quando se viu condenada a ficar com ele eternamente… Como uma amante amargurada vais abrir os olhos e descobrir que foste sugada para dentro de ti mesma e que não encontras nada mais excepto trevas… e morte.